Os primeiros seis dias já estão vencidos. E se pensarmos que o projecto desta Volta a África implica viajar durante seis meses, a viagem praticamente ainda nem começou. Hélio Rodrigues e Daniel Amaro já levaram o UMM Alter II através de Marrocos, o primeiro dos inúmeros países previsto atravessar, nesta Volta a África. Inevitavelmente, tiveram de abordar África com a travessia do Sahara: a única fronteira terrestre que permanece aberta e permite a ligação norte-sul, é a que separa Marrocos da Mauritânia…
Hélio Rodrigues tem meio mundo viajado. Mas, curiosamente, a experiência em África é ainda reduzida. Já tinha estado em Marrocos, pelo que esta fase inicial da viagem foi, em parte, uma repetição. E dizemos em parte porque nunca tinha ido tão ao sul. Mas fê-lo com toda a tranquilidade, sem enganos. Até porque se tomarmos a estrada que cruza o Sahara, no seu sector mais ocidental, não há como enganar. Porque apenas existe uma estrada!
Desde Lisboa, onde partiram há uma semana, até Tânger, porta de entrada da primeira escala africana, o UMM Alter II dos dois aventureiros percorreram facilmente os cerca de 700 quilómetros. Portugal e Espanha foram, pois, atravessados numa única e breve jornada. Já a passagem em Marrocos, que cruzaram de norte a sul, implicou cinco dias bem medidos.
Um café em Tan-Tan, à entrada do Sahara…
A primeira jornada marroquina foi sobretudo passada em Casablanca, onde os expedicionários se demoraram longas horas na visita às instalações da filial local da Sika. Trata-se de um dos patrocinadores do projecto Volta a África. Esta companhia suíça, com um século de actividade, é especialista de produtos e soluções químicas para a construção civil e indústria, onde se conta a automotriz: a Sika fornece a indústria automóvel com material para colagem, selagem, reforço e protecção de componentes, além de ser líder nos produtos de amortecimento acústico. As “pastas” criadas pela Sika são fundamentais, por exemplo, para isolar as carroçarias e assegurar o silêncio no habitáculo dos automóveis!
Depois, foi preciso recuperar terreno. E o UMM Alter II avançou até Guelmin, onde em 1956, ano da independência de Marrocos, estava fixado o limite sul do Protectorado Francês! Dali em diante, para sul, estende-se o Sahara…
Até Janeiro de 1976, todo este sector ocidental do Sahara era administrado por Espanha, que terá mesmo comprado o território ao chefe de uma tribo berbere; isso passou-se no final do século XIX. Tan-Tan, a primeira cidade que encontramos ao descer o Sahara Ocidental, depois de sairmos de Guelmin, não passava, nos tempos coloniais, de um posto de controlo militar. Hélio e Daniel pararam em Tan-Tan para descansar um pouco, sentados numa das esplanadas do centro da cidade.
Através de cenário do “Dakar” e do África Eco Race
Nas últimas edições africanas do Rali Dakar, Tan-Tan foi o ponto de partida da última etapa marroquina; porque a caravana do “Dakar”, ao contrário do que hoje sucede com o Africa Eco Race, entrava na Mauritânia, pelo norte, onde não há sequer fronteira. Mas os viajantes, como os companheiros de Victor Moniz nesta fase do projecto da Volta a África, não têm como fugir à passagem pela fronteira.
Calcula-se que cerca de 350 milhares de civis forçaram a passagem nessa fronteira, invadindo a colónia espanhola munidos apenas de bandeiras de Marrocos. Em questão de dias, o jovem Juan Carlos de Espanha, que ainda nem tinha sido aclamado Rei, sentiu que a retirada do Sahara era irreversível. E estabeleceu um acordo com as autoridades marroquinas e mauritanas, para estas partilhassem a administração do Sahara Ocidental, que então tinha capital em Laâyoune.
Uma vintena de quilómetros depois de Tan-Tan, a Route N1, a estrada nacional que desce todo o Sahara até à fronteira mauritana, encontra-se com o Atlântico. E daí em diante, são raros os troços em que o mar não é avistado da estrada. Um deles é depois de Tarfaya, onde a partir do Cabo Juby, a estrada inflecte para o interior, até Laâyoune. Tarfaya era o ponto da última fronteira com o Sahara espanhol, quando o território foi alvo da invasão pacífica, em finais de Novembro de 1975.
Percurso histórico num veículo histórico
Após mais uma paragem, também num café, em Tarfaya, Hélio e Daniel prosseguiram até Laâyoune, numa jornada que completaram pouco mais adiante, na vila onde está instalado o porto da cidade. E é sensivelmente nas imediações de Laâyoune Port que a Route N1 volta a aproximar-se do oceano.
Percorrer um itinerário como este, tão carregado de história, num veículo igualmente histórico, obriga a imprimir um ritmo de passeio. O UMM Alter II, com os seus 29 anos, tem os seus limites bem marcados. E um deles é nunca rolar a fundo, sobretudo nestas paragens do deserto, com rectas intermináveis e onde as temperaturas durante o dia podem ser elevadas.
Esta primeira jornada no Sahara terminou com os expedicionários a avistar o pôr-do-sol meia-dúzia de quilómetros a norte de Laâyoune Port, numa praia que se tornou em forte atracção local. O motivo de atracção é um pesqueiro encalhado mesmo em frente à praia. O naufrágio ocorreu quase uma década; e a posição em que o navio se encontra, mesmo apontado de frente à praia, explica porque ainda não foi destruído pela força das ondas.
Entre as duas antigas capitais do Sahara Espanhol
Este sábado, o UMM Alter II já chegou bem mais a sul, até à última cidade marroquina, antes da fronteira com a Mauritânia. Hoje chama-se Dakhla, mas originalmente era a Villa Cisneros e foi a primeira capital da colónia espanhola. Era também uma escala importante para os pioneiros da aviação, na rotas pelo norte de África. Até a portuguesa TAP operou em Villa Cisneros nos seus primórdios: os famosos “Dakota” da Linha Imperial, que ligavam Lisboa a Luanda e Lourenço Marques, faziam escala nesta pista, entre a paragem em Casablanca e em Dakar.
Instalada na ponta de uma singular península, a cidade de Dakhla chegou até a ser, por escassos anos, uma cidade mauritana. As ofensivas da guerrilha local, a Frente Polisário, fustigaram de tal modo a Mauritânia, que este país acabou por retirar-se do território. Na busca de paz e protecção, a Mauritânia entregou a Marrocos a sua metade do antigo Sahara Espanhol. Mas isso não significou totalmente a paz, pois a região permanece sob observação das Nações Unidas, que opera nestas paragens uma das suas missões mais duradouras: a MINURSO, acrónimo de Missão das Nações Unidas para o Referendo do Sahara Ocidental. Enquanto a população local não decidir em referendo se pretende a auto-determinação, ou a integração marroquina, as Nações Unidas não aceitam o acordo celebrado, ainda em 1975, entre Marrocos e Espanha.
Últimos quilómetros em Marrocos, até à fronteira
A jornada deste sábado, 19 de Outubro, concluiu-se com a chegada a Dakhla. Antes de entrarem na cidade, Hélio e Daniel não resistiram a um desvio ao asfalto. Primeiro, para fazerem o UMM Alter II rolar nas pistas de areia compacta que partem desde a estrada até um conjunto de aldeias piscatórias. Depois, o UMM aventurou-se pela areia da praia da baia mais abrigada, à entrada de Dakhla, que é hoje um destino paradisíaco para os adeptos do kitesurf.
Para este domingo, restavam cerca de meio milhar de quilómetros até à fronteira com a Mauritânia. Para a despedida de Marrocos, ficou uma das etapas em o isolamento mais se faz sentir. E para quebrar esse isolamento, a paragem no “Barbas”, o hotel-restaurante e estação de serviço que todos os viajantes nestas paragens conhecem. Fica a uma hora de caminho da fronteira, depois da passagem pelo Trópico de Câncer. Dentro de uma semana, voltaremos ao contacto, com mais novas histórias desta Volta a África!
Texto: Alexandre Correia
Fotos: Hélio Rodrigues e Daniel Amaro/Volta a África
por: Alexandre Correia