Nesta Expedição Todo Terreno Peugeot 3008 Lisboa-Dakar-Bissau, a cidade de Nouakchott foi uma placa giratória que nos orientou para diversos destinos. Depois da primeira escala, arrancámos em direcção ao norte, mudando o rumo para alcançarmos o coração do Sahara…
Não saímos cedo, bem pelo contrário. A manhã já se tinha esgotado e pela frente esperavam-nos mais de seis centenas de quilómetros quando arrancámos da capital mauritana e tomámos a avenida do antigo aeroporto, para dai prosseguirmos pela estrada de Atar, uma das mais antigas do país. E uma das primeiras a ter sido asfaltada.
Hoje, esta estrada já perdeu grande parte da sua importância, mas outrora era a principal via de acesso ao norte, mesmo para quem viajava para a segunda cidade da Mauritânia, Nouadhibou, pois embora esta se situe na costa, enquanto não foi aberta a estrada até lá (o que, recordamos, somente aconteceu em 2005…), durante cerca de quatro décadas uma das formas mais seguras de lá se chegar era seguir de Nouakchott até Atar e depois, já em terra, continuar por uma pista até Choum, povoação que não é mais do que um ponto de passagem da linha de comboio que foi aberta para escoar o ferro extraído nas minas de Zouerate e F’derik, transportando-o até ao terminal portuário construído expressamente, na ponta da baia de Cansado, junto ao Cabo Branco.
Tempestade no deserto
Nos dias de hoje, já ninguém vem da capital até Choum para apanhar o comboio até ao mar. Quando muito, para seguir no sentido oposto, até às cidades mineiras. Mas o mais curioso é que o bom estado da estrada para Atar, que diremos até ser merecedor da classificação “muito bom”, deve-se ao facto do caminho de ferro não ter sido prolongado com um ramal desde Choum até Akjoujt, pequena cidade igualmente mineira, que se situa sensivelmente a meio caminho entre essa paragem do comboio e a capital.
A mina de Guelb Moghrein, mesmo ao lado de Akjoujt, foi descoberta em 1946 e desde logo as autoridades francesas, que então administravam a Mauritânia, questionaram-se sobre a sua exploração, considerando o facto de encontrar-se isolada no interior, o que implicava custos de transporte que não havia certeza de serem justificados. Esta mina, a mais antiga onde se extrai, a céu aberto, cobre e ouro, tem uma capacidade relativamente reduzida, daí que a ideia de estender o caminho de ferro até lá foi abandonada e, em vez disso, melhorou-se a estrada até ao porto mais próximo, em Nouakchott.
São 256 quilómetros pelo meio do deserto, quase que permanentemente açoitados por tempestades, que sopram areia com tal intensidade que nalguns pontos podem “nascer” dunas sobre o asfalto da noite para o dia. E acreditem que isto não é exagero!
Logo à saída de Nouakchott, durante alguns quilómetros, para além das bermas estendem-se belas dunas de areia, que oferecem imagens de grande beleza a quem vai passear, mas que potenciam ainda mais o risco do asfalto ficar coberto de areia, pela acção dos ventos constantes. E quem percorre esta estrada assiduamente já nem deve olhar para a paisagem, mas sim para os quilómetros que faltam para o destino. Que implica sempre uma grande viagem, já que quase não há povoações no caminho para as cidades que indicamos. Os condutores mais frequentes são os dos “mini-bus” que duas vezes por dia sobem e descem ao interior, assegurando o transporte de passageiros, bem como os camionistas que transportam minério do complexo de Guelb Moghrein.
Controlo permanente
Aqui, por enquanto, ainda não há controlo de velocidade por radar. A haver, é meramente pela observação e o critério de quem nos mandar parar. E mandam constantemente, pois uma das características das estradas mauritanas são os imensos pontos de controlo, que podem ser assegurados por pelo menos cinco autoridades diferentes e até com paragens obrigatórias seguidas. Há os postos da policia, da “gendarmerie”, da “douane”, da tropa, pura e simples, e até da recente policia de trânsito. Uns encontram-se sempre na ponta das povoações, mas outros têm carácter aleatório e podemos encontrá-los no ponto mais isolado, a meio de uma das rectas intermináveis desta estrada, onde por vezes percorremos três dezenas de quilómetros sem mexermos no volante!
Aproveitando a ausência de radares, lançamos o Peugeot 3008 com o acelerador pregado no fundo e os quilómetros vão-se sucedendo quase sem darmos por eles. Todavia, como não fazemos isto todos os dias, a paisagem não nos é indiferente. E acabamos por “estragar” a média com sucessivas paragens, apenas de alguns minutos, que todos somados rapidamente representam horas. E com isso, a previsão de chegada vai sempre sendo corrigida. Até que simplesmente definimos que iremos chegar à hora do jantar. Que marca um momento, não um ponto que os ponteiros do relógio possam alcançar.
Ainda assim, a parte mais rápida a cumprir é até Akjoujt. Especialmente porque é, de longe, o troço com melhores condições: bom asfalto, largura suficiente para o Peugeot 3008 se cruzar com os enormes camiões sem termos de nos encolher para a berma e, como acima escrevemos, grandes rectas, onde até dá vontade de ligar o “cruise-control” e amarrar o volante, experimentando um modo de condução autónoma menos dependente da tecnologia.
E não é por acaso que a estrada é melhor até Akjoujt: deve-se ao contrato firmado com a companhia canadiana que actualmente explora as minas, segundo o qual compete-lhe garantir toda a manutenção da estrada, que é permanentemente reparada, além de que a cada ano são repavimentados mais 30 quilómetros.
Exploradas por inúmeras companhias em diversos períodos distintos, desde 1952, as minas de Akjoujt, como são mais popularmente conhecidas, foram as primeiras onde se descobriu cobre e ouro. Mas os jazidos são pequenos e mesmo a actual concessionária entende que estejam esgotados no final desta década. Curiosamente, nos anos de 1990, depois de mais uma fase em que a exploração mineira foi encerrada, um consórcio liderado por australianos propôs-se limpar os resíduos da mina de Akjoujt. E o resultado foi surpreendente: em apenas quatro anos conseguiram juntar, partícula a partícula, retiradas das escórias, cerca de seis toneladas de…ouro!
As melhores sanduiches de atum
A fome apertava quando entrámos em Akjoujt. A cidade é pouco mais do que uma fileira de casas, dispostas à direita e à esquerda da estrada. De uma população de pouco mais de sete mil almas, apenas cerca de duas centenas têm trabalho garantido na mina, já que a maioria dos 1500 operários são muito especializados e os locais não têm geralmente formação para se candidatarem a mais do que os lugares mais modestos. Assim, é mesmo a estrada que assegura a sobrevivência da população e não a mina. Porque como está a meio caminho dos locais que esta estrada serve, praticamente não há quem aqui passe que não faça uma paragem. E isso implica gastar dinheiro.
Assim que parámos, abrimos a carteira para pagar a conta no posto de combustíveis, pois atestámos de novo o depósito ao Peugeot 3008. Estava a meio, mas vazios estavam mesmo os nossos estômagos e não resistimos ao doce aroma do pão acabado de cozer, que passou diante de nós, num carrinho de mão, que “estacionou” à porta da pequena mercearia em frente às bombas de combustível.
O rapaz da mercearia estava encantado com o Peugeot. Nunca tinha visto um modelo destes. Nem sequer um carro com uma decoração tão bonita, confessou-nos, depois de pedir, humildemente, se podia fotografá-lo com o seu telefone. Também o fotografámos a ele e ficámos clientes da casa. Três dos pães foram logo ali abertos, assim como outras tantas latas de atum, num casamento perfeito. A acompanhar, para variarmos da água, escolhemos um iogurte de morango.
O Luís Jerónimo bem que suspirou por uma “mini”, com toda a razão. Mas na Mauritânia hoje só pensar em beber álcool já é pecado, quanto mais fazê-lo. No regresso a Nouakchott, uns dias depois, consolamo-nos com umas cervejas sem álcool. Não são a mesma coisa, mas estas estavam geladas e mal demos pela diferença…
Voltando à paragem em Akjoujt, o que demos, entretanto, foi pelo tempo que passou a voar. Aquela que era uma paragem apenas para atestar o depósito, acabou por demorar-nos uma hora. É certo que sempre esticámos as pernas e improvisámos o almoço, mas quando nos voltámos a sentir no interior do 3008, já quase que tínhamos feito a digestão. E deixávamos aqui alguns amigos. Porque não é normal que os estrangeiros, europeus, parem para “fazer sala”, muito menos que se “misturem” com o povo…
Corrida por um frango
O problema é que a nossa viagem ainda nem estava a meio, mas a jornada ia quase no fim. Arrancámos em direcção a Atar com um sentimento de culpa. Que se agravou logo a seguir, quando vimos umas dunas, ao longe, a chamarem por nós. E depois outras, e mais uma velha Peugeot 404 Pick-up e ainda uma cáfila de dromedários, e atrás desta mais outra. E, de repente, fez-se noite. Eram vinte horas quando entrámos em Atar. E também aqui, sem darmos por isso, perdemos quase uma hora, apenas para reabastecer de gasóleo, comprar um saco cheio de bananas e trocar dois dedos de conversa com alguns curiosos que nos abordaram.
O pior, salvo seja, é que dali para a frente já não havia asfalto e ainda faltavam pouco mais de 80 quilómetros até ao nosso destino: Chinguetti, a sétima cidade sagrada do Islão, perdida no meio das dunas do Sahara, nos planaltos acima de Atar. A vantagem de conduzirmos de noite numa pista do deserto é não encontrarmos trânsito absolutamente nenhum, nem sequer animais. E não perdermos tempo a olhar para a paisagem. Portanto, concentramo-nos na condução. E o resultado foi termos chegado bem mais cedo que era suposto, pois os melhores condutores locais demoram uma hora e meia nesta ligação. Nós “poupámos” 35 minutos, não fosse ficar seco o “poulet au citron” que Dah, o cozinheiro de Sylvette, a dona do Auberge La Gueïla, nos preparou.